Compreender a poesia lírica da modernidade não é uma tarefa das mais fáceis, sobretudo se se pensar na sua complexidade, desvelando as mais variadas significações, percorrendo caminhos obscuros e enigmáticos, formando uma espécie de constelação rochosa. Poesia esta caracterizada como caótica e experimental, lançando-se em muitas direções, num turbilhão de formas e temas, às vezes complementares, às vezes antagônicos. Seu hermetismo gera uma sensação de desequilíbrio, de desordem: uma ruptura na ordem natural das coisas, por meio da qual a palavra poética mostra toda a sua potência ilimitada. Nesse sentido, Friedrich afirma:
A língua poética adquire o caráter de um experimento, do qual emergem combinações não pretendidas pelo significado, ou melhor, só então criam o significado. O vocábulo usual aparece com significações insólitas. Palavras provenientes da linguagem técnica mais remota vêm eletrizadas liricamente. A sintaxe desmembra-se ou reduz-se a expressões nominais intencionalmente primitivas. Os mais antigos instrumentos da poesia, a comparação e a metáfora, são aplicados de uma nova maneira, que evita o termo de comparação natural e força uma união irreal daquilo que real e logicamente é inconciliável. (1978, p. 17-8)
A ausência de um padrão único para o fazer poético leva cada autor a buscar sua própria identidade poética no que diz respeito aos aspectos formais e temáticos de sua produção. Os inúmeros movimentos de vanguarda – desde a destruição do convencional e a rebeldia dos futuristas, passando pelas combinações rítmicas e pelos jogos de imagens ousadas do Expressionismo, pela realidade fracionada e expressa em planos superpostos no Cubismo, pelo acaso e pela anarquia do Dadaísmo, e pela junção entre o sonho e a realidade pregada pelo Surrealismo –, os experimentalismos individuais ou de grupo, chegando-se até às inovações mais ousadas do concretismo e seus similares, são provas cabais da multifacetação que a poesia lírica vem vivendo, desde o século XIX até este limiar de milênio, quebrando o estigma de que a poesia é um gênero poético popular, em que se expressam unicamente sentimentos do eu-lírico relacionados ao amor, à morte, à natureza. Visão esta que imperava na literatura desde a Antigüidade Clássica.
A inquietude provocada pela tensão a que a poesia lírica moderna submete o leitor advêm da mistura de incompreensão, hermetismo, desconcerto e fascínio gerada na mente humana. Tensão esta que tem origem em simbolistas como Baudelaire, Mallarmé, Vernaile e Rimbaud, não esquecendo de românticos como o norte-americano Poe e o alemão Novallis, entre outros, e que se expandirá entre os poetas do século vinte, tanto no plano da expressão como no plano do conteúdo, pois, segundo Friedrich (1978, p. 16), a poesia não quer ser mais construída como reflexo daquilo que comumente se chame realidade – mesmo que a tenha absorvido com alguns resíduos –, desvencilhando-se das ordens espacio-temporal, objetiva e anímica, e, quando se volta para a realidade, esta se completa com um significado diferente daquele da poesia dos períodos anteriores, porque o comportamento lírico que domina a modernidade é o de “transformar”, tanto o mundo quanto a língua.
Friedrich (1978, p. 143) faz uma distinção entre as polaridades poéticas do século XX, dividindo-as em dois grandes grupos: a lírica intelectualizada, primando pelo rigor formal, que teve como iniciador Mallarmé, sendo continuada por Valéry; e a lírica formalmente livre, alógica, com origem em Rimbaud e chegando aos extremos com André Breton. A respeito disso, D’Onofrio diz que:
O contraste apontado não deve ser entendido no sentido exclusivista; antes, como indicação apenas de predominância de uma tendência sobre a outra num determinado poeta. Em verdade, de uma forma geral, a tensão existente entre as forças cerebrais e o impulso anárquico pode ser observada nos melhores líricos do Modernismo. (1997, p. 450)
D’Onofrio (1997, p. 450) cita como princípios estéticos e ideológicos que possibilitam a percepção de linhas de força análogas no lirismo moderno: o antipassadismo, como ruptura com a tradição cultural e o desejo de criar uma nova estética; a sugestão, tendendo mais a sugerir que a comunicar, chegando-se ao extremo da “não-comunicação”; a despersonalização, devido à crise do conceito de personalidade, que reduziu a condição do ser humano; a fragmentação, apresentando não a totalidade da vida, mas apenas fragmentos da realidade; o figurativismo, penetrando no campo do desenho artístico, rompendo fronteiras e buscando pontos de intersecção entre técnicas e materiais; e o grotesco, colocando o feio como um valor intrínseco, autônomo, estabelecendo novos padrões estéticos.
Para Friedrich (1978, p. 21), angústias, degradações, confusões, o escuro e o sombrio, dilaceração em extremos opostos e a tendência ao Nada soam como caracteres desta poética da modernidade, permeada pelas categorias negativas: “desorientação, dissolução do que é corrente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento...” (1978, p. 22). Neste sentido, na transubstanciação a que a palavra é submetida ao ser colocada em poesia, o feio, o grotesco, o caótico podem ser poéticos a partir do momento em que, ao se transformar em linguagem, seus significados referenciais se esvaneçam. De acordo com Cruz:
Ao poeta moderno cabe desfazer a idéia generalizada de que a lírica é a linguagem do estado de ânimo, tomando parte dela não mais como pessoa particular, mas como uma inteligência ativa e transformadora, como um operador da linguagem, o qual através de uma linguagem perturbadora, de combinações insólitas faz emergir significações de seus textos que até então não podiam relacionar-se com o estético. (1999, p. 125)
Sendo a poesia moderna totalmente centrada na linguagem e seus experimentalismos, é explorada em todas as suas potencialidades. O poeta, ao criar sua obra, retira as palavras de seu estado de inércia e leva-as para as infinitudes da poesia, não as limitando às ordens fonológica, morfossintática e semântica estabelecidas, mas a sua habilidade criadora que as submete a um universo de linguagem ilimitado. Em poesia, as palavras se harmonizam em conjunto para extrapolar a neutralidade dos significantes, criando imagens inusitadas, e mesmo insólitas e surreais.
Em meio à massificação da sociedade moderna e às ideologias estereotipadas de senso comum, a poesia se manifesta como forma de despertar do homem para seu universo exterior e interior, chamando-o para um reencontro com a natureza, com o outro e consigo mesmo. Pelo texto poético, o homem é convidado a refletir, interpretar, entender, questionar, questionar-se, maravilhar-se, sensibilizar-se, angustiar-se, enfim, abrir-se para a vida em todos os seus sentidos e em todos os seus desdobramentos.
Por tudo isso, pode-se perceber que a poesia, dentro da modernidade, apresenta um caráter de questionamento: questionamento de uma realidade estereotipada e massificada, organizada por uma lógica pré-estabelecida e de senso comum; questionamento de uma mentalidade, alertando para o fato de que a evolução de um povo se faz ao nível da mente, de acordo com a consciência-de-mundo de cada indivíduo, sendo que a poesia tem a capacidade de fundir os sonhos, o imaginário, o real e os ideais de existência; questionamento, enfim, de si mesma, enquanto sistema lingüístico, pois a tendência da lírica moderna é voltar-se para si mesma e transformar o material lingüístico, inová-lo ilimitadamente, percorrendo caminhos enigmáticos, obscuros e caóticos, o que vem demonstrar toda a sua complexidade. Isso porque é a palavra uma potência ilimitada.
Carlos Eduardo Brefore Pinheiro
(Mestre em Teoria da Literatura pela UNESP – São José do Rio Preto;
Professor das disciplinas Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa,
do curso de Letras, do Centro Universitário Toledo)
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