quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A BÍBLICA POESIA DE ADÉLIA PRADO

“Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo:
esta é a lei, não dos homens, mas de Deus.” Carlos Drummond de Andrade).


A escritora Adélia Prado surgiu para a literatura brasileira apoiada pela escrita especializada e por alguns intelectuais entusiasmados com o lirismo que vinha do interior mineiro e desde a primeira noite de autógrafos em 1976 no Rio de Janeiro, já editou poesia e prosa. São onze os livros publicados, dos quais seis são de poesia e cinco, de prosa.

Inúmeras pesquisas foram realizadas sobre a sua produção literária. Estudam-se as suas técnicas, a sua linguagem e os mitos presentes em seus textos de temática religiosa ou representativos da figura feminina. Sabe-se que muitos dos trabalhos tratam do que é mais saliente na obra adeliana: o cotidiano, o relato da vida no interior, a expressão feminina, o erotismo, o amor a Deus, o amor à religião católica, o retrato de um mundo kitsch e a incorporação de uma linguagem coloquial esvaziada pelos clichês e empobrecida pela ideologia.

Sandra Mara Stroparo em “O Espelho de Vênus, Poesia e Experiência em Adélia Prado” declara: “os menores e maiores acontecimentos da vida considerados sempre com extrema trivialidade, simultânea a uma constante aura religiosa envolvendo e explicando muitos poemas, a memória familiar juntamente ainda a uma voz que se faz e se afirma feminina são a massa formadora desta poesia.”(1995; 7).

Em estudo sobre a produção memorialística feminina da literatura brasileira, Maria José Motta Viana, em Do sótão à vitrine, Memórias de Mulheres, sugere um novo olhar para o discurso feminino nunca antes respeitado, mas sempre representativo de parte da humanidade e, particularmente da mulher, que para ela pode ter reproduzido, muitas vezes, um modelo masculino. Para confirmar tal idéia, a autora afirma que, mesmo com os avanços da Sociologia, da Psicanálise e da Antropologia e mesmo com os movimentos feministas, a mulher é alvo de definições do imaginário masculino. Para ela, desde a Antiguidade,

quando cabia ainda aos mitos a tarefa de explicar a formação e configuração do Cosmos e do ser humano, mortal, sexuado e cultural, reservaram-se para a mulher características ditas naturais, como passividade, submissão, fragilidade, menor capacidade de raciocínio e maior emotividade. Essas características, ao serem ora aceitas, ora rejeitadas pela mulher, contribuíram para fazer dela o lugar dos paradoxos. . . Em um outro molde, criou-se a mulher forjada por definições que lhe são conferidas de fora. (Viana 1995: 13)

Viana escreve também a respeito da mulher contemporânea, diferenciando-a dos moldes antigos: “Do confinado espaço das cozinhas e alcovas, espalha-se e apossa-se também das salas, varandas, jardins e do resto, dividindo com os homens espaços, ocupações e principalmente linguagens que lhe eram antes inacessíveis” (1995: 13). Para ela, a mulher contemporânea é resultado da ampliação do espaço feminino, gerador na mulher de uma linguagem própria, mas que, ainda assim, por não se firmar no sentido ideológico-político, não consegue ser ouvida. A literatura feminina acaba sendo percebida como reflexo de um ser não dotado de razão ou potencial de trabalho; conseqüentemente só pode produzir uma personagem feminina.

Esta personagem feminina está em Adélia Prado, já que o eu poemático está confinado à cozinha e à alcova, embora, como se verificará no decorrer de sua produção literária, instaurador de um novo discurso: “Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,/ sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia./ Faço comida e como./ Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro e atiro os restos.”(Grande desejo: 1995; 12).

Sobre este aspecto, Affonso Romano de Sant’Anna no artigo Adélia: a mulher, o corpo e a poesia afirma: “Em Adélia também tem pai e mãe. Mas sobretudo tem lá o marido, a casa, seu corpo e sua relação mística e erótica com sua comunidade. Ela sabe que a ‘bacia da mulher é mais larga do que a do homem’ .” (1987; 13).

Mas em sua obra há também a província: “Essa poetisa, que está exorcizando a província de suas vergonhas, também se rejubila com a condição daquelas que descobrem a alegria da vida nos menores e ‘desprezíveis’ afazeres do dia-a-dia” (Sant'Anna 1987; 11).

Assinala que Prado não empresta a linguagem dos homens: é geradora de sua própria e a compara a outras escritoras jovens, as quais, quando do seu aparecimento, faziam uma poesia de descoberta de uma linguagem do modo masculino de ver o mundo. Em decorrência, destaca um modo de fazer arte sem reproduzir uma ideologia social e literária, descobrindo um caráter universal na escolha de temas tão regionais como o da província: “Mais que meramente ‘feminina’ e ‘telúrica’, a poesia de Adélia vem do sertão. Do sertão não apenas como distância e mato, do sertão que deixa de ser mineiro para ser uma categoria cósmica” (1987; 10).

Há, ainda, expressivamente registrados, o resgate dos acontecimentos mais ínfimos, o erotismo do corpo e a presença de Deus humanizado.

A respeito da presença de Deus humanizado, Frei Betto no texto Adélia nos prados do Senhor discorre: “Adélia sabe, como todo aquele que faz da crença um caso de amor, que Deus é simples: “São elementares Deus e sua obra, / é macho e fêmea / sete cores / três reinos / um mandamento só: amai-vos” (A carpideira).” (2000; 124). Deus humanizado está também em Filhinha de Oráculos de maio: “Deus não é severo mais,/ suas rugas, sua boca vincada/ são marcas de expressão/ de tanto sorrir pra mim./ Me chama a audiências privadas,/ me trata por Lucilinda, só me proíbe coisas/visando meu próprio bem./ Quando o passeio é à borda de precipícios,/ me dá sua mão enorme./ Eu não sou órfã mais não.” (1999; 105), ou ainda, nos versos de Na terra como no céu: “ Nesta hora da tarde/ quando a casa repousa/ a obra de minhas mãos/ é esta cozinha limpa./ Tão fácil/ um dia depois do outro/ e logo estaremos juntos/ nas “colinas eternas”./ Recupera meu corpo/ um modo de bondade/ a que me torna capaz/ de produzir um verso./ Compreendes-me, Altíssimo?/ Ele não responde, dorme também a sesta.” (1999; 101).

O que é mais significativo no tocante à religião é o fato de o texto estar ligado a uma tradição tão milenar como é o cristianismo e, ao mesmo tempo, desligado de pregações religiosas impositivas ou moralistas, pois a sua poesia vai à fonte da história cristã e relata os elementos corporais e humanos de Deus, chegando mesmo a tornar eróticas as relações com o divino como está em À soleira: Não compreendo nada. Só vos desejo/ e meu desejo é como se miasse por Vós.” (1991; 274).

Segundo o teólogo Frei Betto, “a teologia subjacente a seus poemas transpõe o limiar do maniqueísmo e resgata a unidade semítica da Bíblia, onde conhecer e experimentar são sinônimos, e a proclamação canônica da fé afirma ‘a ressurreição da carne’.” (2000; 125). Versos significativos são: “Sem o corpo a alma de um homem não goza.” (A terceira via: 1995; 347), “E teu corpo na cruz, suspenso./ E teu corpo na cruz, sem panos:/ olha para mim./ Eu te adoro, ó salvador meu/ que apaixonadamente me revelas/ a inocência da carne./ Expondo-te como um fruto/ nesta árvore de execração/ o que dizes é amor,/ amor do corpo, amor.” (Festa do corpo de Deus: 1995; 279).

Outro poema que traz o registro da religiosidade que redime o corpo castigado pelos escrúpulos da igreja medieval é O modo poético, no qual se verifica que a poesia, a religiosidade e o cotidiano resumem Deus, no qual o discurso religioso com tônica sensual compõe um quadro diferente de outras poéticas contemporâneas: “é em sexo, morte e Deus,/ que eu penso invariavelmente, todo dia./ é na presença d’ Ele que eu me dispo,/ e muito mais, d’Ele que não é pudico/ e não se ofende com as posições no amor./ Quando tudo se recompõe,/ é saltitantes que nos vamos/ cuidar de horta e gaiola (...)” (1995; 77).

Para Ana Lúcia Moret em “Tradição e Modernidade na Obra de Adélia Prado” o discurso da autora é rico e moderno e assim o é pelo fato de tomar a linguagem do Antigo Testamento, cuja característica é materializar a palavra (influência hebraica em que expressões fantasiosas e concretas são mescladas a metáforas e imagens fortes e ousadas). Veja-se o trecho seguinte:

O que mais nos surpreende neste aspecto da religiosidade de Adélia Prado é que ela, ao ligar-se a uma tradição tão milenar como o cristianismo, acaba escolhendo dentro dele um ponto ainda mais distante, no caso, o Antigo Testamento. Paradoxalmente, isto lhe confere certa modernidade na medida em que se afasta ou se diferencia da prática religiosa tal como se apresenta na pregação católica de nossos tempos, mais centrada no Novo Testamento. Ou seja, o primitivismo do Antigo Testamento acaba dando ares mais modernos à sua poética da religiosidade. (1993; 25)

Em resenha para o periódico Jornal da Tarde, José Nêumanne pronunciou: “O cristianismo em Adélia não é um experimento metafísico, mas uma vivência cotidiana, doméstica. Uma poesia, perdoem o trocadilho, de fé no chão. Ela pratica sua crença religiosa à mesa, mas também na cama.”. Sobre a mesa diz: “Dona de casa mineira, Adélia é eucarística por excelência. A comida está presente em sua poesia desde sempre.” (1999).

No exemplo a seguir, há, além da comida, a referência à mãe e à infância. Por toda a sua obra há a saudade da mãe nas descrições dos gestos simples e bondosos daquela que morreu quando a poeta tinha 14 anos de idade: “Este puxa-puxa/ tá com gosto de coco. / A senhora pôs coco, mãe? / - Que coco nada. / - Teve festa quando a senhora casou? / - Teve. Demais. / - O que que teve então? / - Nada não menina, casou e pronto. / - Só isso? / - Só e chega. / Uma vez fizemos piquenique, / ela fez bolas de carne / pra gente comer com pão / Lembro a volta do rio / e nós na areia. / Era domingo, / ela estava sem fadiga / e me respondia com doçura. / Se for só isso o céu, / está perfeito.” (Mater dolorosa: (1999; 47).

Em Adélia Prado “Tudo é permeado por Deus” (Frei Betto: 2000; 122). Mesmo as práticas cotidianas mais banais constituem motivo para o encontro com o sagrado, que, na maioria das vezes, não é teologal, mas sim experimental. Exemplar é O poeta ficou cansado do livro Oráculos de maio: “ó Deus, / me deixa trabalhar na cozinha,/ nem vendedor nem escrivão,/ me deixa fazer Teu pão./ Filha, diz-me o Senhor,/ eu só como palavras.” (1999; 13). Outro texto é A fala das coisas: “O ponto de cruz é iluminação do Espírito”. (1995; 195).

Importante destacar que nos exemplos apresentados há uma religiosidade registrada por voz feminina, marcada por experiências tipicamente das mulheres tais como fazer o pão ou bordar o ponto de cruz.

De sua última obra, pode-se recolher Mural, no qual estão presentes o registro do cotidiano, a beleza das coisas repetidamente exercidas, o diálogo com Deus e a sua presença nos acontecimentos mais ínfimos: “Recolhe do ninho os ovos/ a mulher/ nem jovem nem velha,/ em estado de perfeito uso. / Não vem do sol indeciso/ a claridade expandindo-se,/ é dela que nasce a luz/ de natureza velada,/ é seu próprio gosto/ em ter uma família,/ amar a aprazível rotina./ Ela não sabe que sabe, a rotina perfeita é Deus:/ as galinhas porão seus ovos,/ ala porá sua saia,/ a árvore a seu tempo/ dará suas flores rosadas./ A mulher não sabe que reza:/ que nada mude, Senhor.” (1999; 39).

O fazer literário, sua origem e o papel do poeta no mundo constituem também uma constante. Na sua obra, a poesia nasce da voz de Deus e o poeta é aquele que a transmite à humanidade: "Com efeito, eu mesma recebi do Senhor o que vos transmito" - uma adaptação de Co. 11, 23. e epígrafe da primeira seção de poemas de O Coração Disparado.

Sua metapoesia revela que ao poeta cabe o papel de servir a Deus, porque aquele materializa a palavra deste, que é a própria poesia: "Poesia sois Vós, ó Deus./ Eu busco Vos servir.” (1995; 282) e que a construção artística associada ao sofrimento da matéria, associada ao divino presente nas coisas mundanas salvam o poeta: "O que me fada é a poesia. Alguém já chamou Deus por este nome? Pois chamo eu que não sou hierática nem profética e temo descobrir a via alucinante: o modo poético de salvação." (1987; 20).

A respeito da poesia vinda de Deus, conforme o autor de A epifania da condição feminina, Adélia Prado assume “um papel de profeta de Deus, espécie de condição intermediária entre Deus e os homens, que sua poesia cumpriria. (2000; 82).

Em diversas entrevistas, a mineira defende a concepção: “Considero a poesia a passagem de Deus entre nós, o sinal luminoso de Seu dedo na brutalidade das coisas. Tocados por Ele, não morreremos. A ressurreição se garante. Claro que isso ocorre também fora da arte(...) A poesia é verdade. Posso inventar uma linguagem, nunca uma emoção. (2000;82).

*Ester Mian da Cruz é professora das Faculdades Toledo de Araçatuba

Este artigo foi publicado pela revista Plural, ano de 2001, da Academia Araçatubense de Letras

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